quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Alto... e Pára o Baile!

Se pensam que em Angola encontram um povo triste, deprimido pela guerra, e pelas condições de vida muitas vezes deploráveis... desenganem-se. Sorrisos e festa é o que se vê mais naquelas ruas. E que festas! Chamam chauanas a uma espécie de churrascos. Aproveitam os pátios interiores, entre os muros das suas casas, para comerem carnes assadas na hora, beberem muitas cucas - a cerveja angolana, e dançarem muito. A noite toda se for possível.
 
Música alta, kuduros e kisombas são obrigatórios. Nestas chauanas em Angola descobri que tenho mesmo o cú duro. Se cá danço que se farta, lá não consigo abanar o rabinho como eles e elas nem com os treinos de um mês! 

Apesar dos elogios simpáticos das meninas e dos meninos: 'A Carla tem jeito!' 'A moça dança!' Eu considero que francamente estou a anos luz de dançar como eles, talvez a mesma distância que eles estão da civilização. Só com muitos meses, anos, daquilo, e talvez lá chegue um dia!

Mas compreende-se porquê. Aquelas crianças começam a dançar de pequeninos! Passamos nas ruas e vê-mo-los, a abanarem-se ainda mal se põem de pé. Não têm brinquedos. As brincadeiras de rua não são só as mais baratas, mas as mais acessíveis.

De facto, no geral dos angolanos, a música escorre-lhes no sangue! Mas, também digo-vos que nem todos os locais sabem dançar. Houve sempre algumas mulheres e alguns homens que garantiram, e alguns até provaram, não saber dançar mesmo! São as excepções.

Mas quando dançam, é até cairem. Houve uma noite em que o motorista, depois de uma chauana, tentou sentar-se na mota e ía morrendo ali mesmo. Pois, teve de ser escoltado a casa. Não foi da dança concerteza. Mas aquelas cucas!... são duvidosas.

O entusiasmo é enorme. Festa é lá com eles. Todos comparecem, qual religião se tratasse. Filhos? Podem esquecer! A chauana está em primeiro lugar nessa noite. Aliás, o melhor sistema para se conseguir comparência de 100% a uma formação de trabalho, é marcar uma chauana. Falta experimentar se o abandono ao trabalho não diminuiria com uma chauana diária. Isso é que era!

Mas, o entusiasmo tem limites. A determinada altura os colegas do Pedro chamaram-nos e disseram-nos uma pérola inesquecível: "Pedro, agora que vens para Angola, a Carla já não é mais tua esposa! É a nossa esposa!"

Alto e pára o baile!
"Com'é?!" Foi a melhor maneira de aprender a falar como eles! A piadinha dos angolanos! Já viram?! 

Pois essa é a outra onda de Angola. São muitas mulheres. Muito poucos homens. Morreram muitos na guerra, facto inegável. Porém, eles têm um sonho: acreditam que para cada angolano existem 15 mulheres, como diz o Mário, um sobrevivente. É mais ou menos como as 70 virgens para os afegãos, numa versão mais light. A guerra faz mesmo muito mal às cucas das pessoas!

Mas olhem que elas também são frescas para assar! Não são só os homens que são perigosos. Em Angola, Luanda mais concretamente, elas são muito saídas das cascas. Mas muito mesmo. É por isso que uma pessoa tem de ter vigilância sobre o que é seu. Ou então é roubado!...

E não estou a falar de sapatos giros.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Borboleta Sem Asas


Tinham-nos avisado que o limpa pára-brisas do nosso carro devia ter bastante água na aproximação a Ndalatando, na viagem às quedas de água, por causa de uma espécie de praga de borboletas.

Na ida, fomos recebidos por um bando de borboletas de cor pérola, lindíssimas, que a juntar às outras experiências da viagem, queriam fazer-nos acreditar que estávamos a viver uma utopia. 

No regresso a casa, surgiram borboletas diferentes, de cor castanha e cobre, muito maiores, igualmente lindas, mas mais aventureiras. Uma bateu-nos com força no pára-brisas, vinda de surpresa, o que nos deixou tristes. Não queríamos matar nenhuma. Muito menos ficar a vê-la durante toda a viagem!

Quando parámos o carro, porém, a borboleta mexeu-se e a esperança de a recuperar também. Era muito difícil mas agarrei nas asas com o máximo cuidado que se pode ter perante aquela fragilidade e retirei-a de lá. Fiquei a segurá-la na mão, a aguardar sinais de vida, enquanto metade da minha sande do almoço, entretanto interrompido, ficara no assento esquecida, eu olhava a mão. 

A borboleta tentava voar, batendo as asas freneticamente, com vontade de viver, mas sem grandes possibilidades. Tinha coragem, mas não tinha forças. 

Fiquei a observá-la enquanto aguardava que o Pedro abastecesse para, na próxima oportunidade, poder devolvê-la à natureza, a quem pertence.

Bateu-me no vidro uma mulher jovem. Chamou-me mulata e pediu-me a sande que viu no meu assento. De forma directa disse-me “eu tenho fome e tu tens aí isso, podias dar-me!”

Não sei explicar porquê mas não me mexi. Não sei se por causa da forma directa e objectiva com que ela se dirigiu a mim, se por causa da fragilidade da borboleta e da minha, não me mexi.

Hoje não me apeteceu jantar… Fui para a cama… Caiu uma lágrima.

Nem sempre podemos voltar atrás para corrigir uma reacção. Fiz o que devia ter feito no caso da borboleta… mas quando olhei de novo para o lado, a mulher já lá não estava. Não posso deixar de partilhar a tristeza, a frustração, por não ter agido imediatamente para matar a fome, como para ajudar uma borboleta que o mais provável é não ter sobrevivido. 

Eu podia ter ficado sem o resto da sande o resto da tarde… será que ela conseguiu almoçar? E será que alguém a vai ajudar amanhã? 

Enquanto a borboleta cabia na minha mão… isto já não cabe.
 
Fazer alguma coisa em África, não é fazer o suficiente. Num continente com tantos recursos naturais, com tanta possibilidade de auto-subsistência, riquezas como petróleo, ouro e diamantes… porém com tanta ganância humana!

Num mundo com a capacidade de matar a fome a todos os seus habitantes e com todos os recursos para isso… sinto-me como a borboleta, com coragem, mas sem forças.

Quero voar, mas parece que… não tenho asas.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A Caminho de Kalandula


Não provoca arrependimento algum, acordar cedo para conseguirmos fazer os 420km desde Luanda por terras desconhecidas, parte em terreno esburacado, outra em terreno picado, para lá chegar antes do sol se pôr.

Só o atrevimento em enfrentar as forças policiais, que fazem tudo para nos arrancar ‘gasosas’, são um verdadeiro acto de coragem. Como nos dizem os locais, é uma questão de adaptação. E com o hábito, de facto acabámos por ser nós a dar-lhes a volta com pouquíssimos míseros Kwansas, e apenas e unicamente quando nos pediam de forma directa. Sempre que procuravam subterfúgios para inventar uma infracção, nós insistíamos até ao fim, estóicos na nossa razão e vencemo-los pelo cansaço. Acabámos os dois a rir de tudo isto.

Chegámos a NDalatando e ficámos espantados com a vista deslumbrante de uma cidade rural, em que as casas térreas, feitas de tijolos artesanais, são todas da cor do pó, vermelhas, e recebem o sol da tarde, que espelham por toda a montanha que se ergue por cima das casas, criando uma cidade da mesma cor, cercada de árvores, a maior parte Palmeiras.

Fica uma imagem mágica à chegada, inexplicável.

Depois de uma visita de carro pela cidade, por umas casas da época colonial, encostámos o carro antes da rotunda com o busto da Rainha Jinga, a Rainha Africana, que queria ser considerada um Rei.

E quando pensávamos começar a comer, apareceu-nos uma criança na janela do carro a dizer-nos adeus. Pequenina, acenava, de cara triste e suja e olhando para a nossa comida, num gesto sem nenhuma palavra, possivelmente incapaz de as proferir, indicou-nos que tinha fome. Dividimos o lanche, e ficámos felizes por podermos contribuir para um sorriso de quem parecia nunca ter visto uma simples bola sem creme.

Estas são as coisas más de África, as mais difíceis de suportar e impossíveis de esquecer.

Prosseguimos pensativos até Cacuso.

A paisagem é uma loucura. É quando se tem a noção de que Angola é imensa. Varia entre o árido da savana, e a floresta tropical. Várias árvores fabulosamente diferentes. Nunca havíamos visto todas aquelas variedades. É indiscritível a magia destes locais. De repente um grupo de meninos, bem pequenos, saem da floresta e é quando reparamos numas casas dentro da floresta diferentes de todas as que havíamos visto até aqui. Junto ao rio as mães lavam mais roupa enquanto a já lavada, seca estendida nos arbustos, e do outro lado da estrada, duas senhoras sobem do rio, carregando à cabeça alguidares cheios de loiça luzidia, acabada de lavar.

Há de tudo em África, até uns meninos da floresta, nos fazem acreditar que vivemos um fim-de-semana num conto de fadas.

Ao passar por eles na estrada, levantámos as mãos a acenar-lhes e foram-nos retribuídos eufóricos acenos, uma grande algazarra e inúmeros sorrisos. Parece que não passa ali muita gente que os veja.

Brincam com as coisas mais simples. Serve uma roda de uma bicicleta e um pau para se divertirem numa tarde. Um sorriso gigante prova que há muito mais alegria numa brincadeira simples que num jogo de playstation, ou numa grande casa de bonecas.

Chegámos a Malanje, onde dormimos essa noite.

De manhã percebemos que alguém proactivamente nos tinha lavado o carro e aguardava uma pequena retribuição que agradeceu muito. Seguimos para as Quedas a cerca de 80 km dali apanhando um troço da estrada em obras. Tudo em Angola está em fase de recuperação.

Na estrada muita gente procura vender aos carros que passam comida ou utilidades. À nossa aproximação elevam-nos carnes, uma espécie de ratos da savana - os mangustos, cabras selvagens, fruta, legumes e carvão, que observamos enquanto passamos, é quase como diz o Pedro como quando passamos nas prateleiras do supermercado.

Chegámos e percebemos logo que, quando se diz que Angola tem paisagens de cortar a respiração, este é certamente um desses lugares.

Até ao ano em que eu nasci, 1975 na época colonial, eram conhecidas como as Quedas do Duque de Bragança. São agora chamadas de as Quedas de Kalandula.

O Rio Lucala, o mais importante afluente do rio Kwanza é o responsável por esta maravilha natural, as segundas maiores cascatas de África.

São uns impressionantes 410 metros de extensão de água a precipitar-se de uma altura de 105 metros. E em vez de um arco-íris, recebeu-nos com dois. Mas é melhor verem as imagens que partilho aqui convosco, para poderem confirmar o quão magníficas são estas quedas!

Vou tentar carregar igualmente um pequeno vídeo aqui, em breve.

Para já, sigam este link para um vídeo que encontrei no youtube: 
http://youtu.be/7NYAvZ1D6kE?hd=1

terça-feira, 14 de agosto de 2012

De Volta à Cidade da Luz

A chegada ontem a Lisboa foi fabulosa. No avião, ainda no céu, observei o mar, o Rio Tejo, Palmela, o Cristo-Rei, as Amoreiras, as Torres da Expo… e aterrámos.
  
De uma luz sem igual, a primeira coisa que retirei da mala, foram os óculos de sol. É tão linda a nossa cidade da luz.
Fui recebida com calor e muitos sorrisos e abraços no aeroporto de Lisboa. De facto é maravilhoso estar de volta!

Nas ruas o trânsito de uma ordem fenomenal, até faz confusão. Já tinha saudades de ver conduzir com tanta beleza, ordem e civismo. Se alguém me disser mal da condução em Portugal, ficam desde já avisados, que é imediatamente recambiado para África!

A luz é imensa. Se o Sol brilha para todos, aqui ele ilumina de uma luz clara sem igual. É branca, reflecte na calçada portuguesa e espalha-se por todo o lado.

A viagem foi deliciosamente escolhida pela Ponte Vasco da Gama pelo sogro, que conduziu exemplar como sempre, até Palmela. O Parque das Nações e a Ponte que condizem, com a paisagem futurista, projecto da Expo, mostram-me uma cidade fabulosamente avançada. Assim como Luanda deseja ser…

E recordo as palavras do Hélder quando me disse uma noite em Luanda, numa chauana (ainda vos vou contar um destes dia o que são chauanas) ‘Angola quer imitar Portugal em tudo, até no código penal!’ Mas a verdade é essa, Luanda está a surgir como uma cópia do nosso país. Daí a mão-de-obra estar a ser recrutada de cá. Precisam de nós mais como professores. Tanto que têm de aprender, porém.

As primeiras transacções comerciais cá e eu sinto uma felicidade extrema. Levar o carro à inspecção e ser atendida por uma portuguesa na recepção, e por técnicos portugueses. E no café ‘desejam mais alguma coisa?’, perguntou a senhora. ‘Oh sim, por favor, um copo de água!’ O que eu gosto de beber o meu café e um copo de água. Saudades. Coisas simples mas que em Angola não se podem fazer! Nem pensar em beber água da torneira! ‘Quanto lhe devo?’ pergunto, ‘Um Euro e dez cêntimos.’ E eu paguei e sorri. Foi tão satisfatório voltar a pagar em Euros. ‘Cheguei a casa’, é o meu pensamento.


Estranhei logo o primeiro estabelecimento em que entrei em Palmela, a padaria. Estava um cliente a ser atendido por uma portuguesa. E na nossa vez, nem foi preciso repetir o pedido. Em Angola eu tenho de repetir tudo o que peço pelo menos mais uma vez… e às vezes, muitas vezes, sou tão questionada que acabava por responder ‘deixe lá! Obrigada!’, desistia e ia embora.

Há aquelas pessoas que falam mal português. Mas, no meu caso, parecia que eu falava bem demais! Muitas vezes não nos entendem. A primeira coisa portanto que aconselho os angolanos a aprenderem, é a nossa língua.

Nesta altura, devem de estar os estimados leitores a pensar de mim: 'que horror! está a ser tão mazinha!'

Devo portanto partilhar convosco a minha experiência ao aterrar em Lisboa. Ouvi um senhor angolano, vestido de executivo, perguntar a um jovem angolano, 'estás cá em Lisboa a estudar?! Muito bem! E depois vais trabalhar para Angola, que é para nós dizermos aos tugas de uma vez por todas 'vá, vão lá embora de volta para o vosso país!'... ouvi isto, passei por eles, inclinei a cabeça e sorri. São muito poucas as pessoas que identificariam no meu irónico sorriso amarelado o meu pensamento, 'ainda faltam muitos anos para esse fenomeno acontecer!'


Mas, é uma sensação ainda de vazio… é como se estivesse descalça de novo… mas desta vez de uma outra forma, porque mais do que sapatos... falta uma parte de mim.

Eu só regresso mesmo a mim... daqui a um mês e uma semana…

São uns longos quarenta dias que vão custar uma eternidade a passar!

domingo, 12 de agosto de 2012

O Meu Imbondeiro e a Viagem de Regresso


O imbondeiro é uma árvore africana de grande porte, que pode alcançar entre 5 a 25m de altura e até 9m de diâmetro no tronco. Destaca-se pela sua capacidade de armazenamento de água no tronco, que pode ir até 120.000 litros.

Tudo no imbondeiro serve para a sobrevivência do ser humano.

O seu fruto – múcua - num formato da alfarroba, quando estão secos, num formato de manga quando estão bons, sempre pendurados no imbondeiro por pequenas lianas, assemelham-se a grandes lágrimas.

A casca do fruto é utilizada pelas pessoas como tigelas. A polpa e a fibra de seus frutos, assim como as folhas da árvore são curativas. As sementes possuem óleo vegetal, podem ser assadas, moídas e consumidas como uma bebida que pode substituir o café.

Considerada sagrada, derrubar uma árvore que pode viver até 6 mil anos é considerado um sacrilégio em Angola.

A maior parte destas peculiares árvores não têm folhas nesta altura do ano, pelo que parecem tristes. E como descreve Mia Couto, parece uma árvore plantada por Deus ao contrário, com as raízes para cima.

Quando cheguei a África, e encontrei o imbondeiro, parece que viajei para trás no tempo, para as origens. E enquanto cá estive, senti que os dias passaram por mim demasiado rápido, numa vontade própria do tempo a lutar para chegar depressa…

Chegou de novo o dia de partir.

Desta vez viajo de regresso a casa, para abraçar as minhas raízes…

Mas onde estão realmente as nossas raízes? As nossas origens são o nosso passado, ou o que possuímos de maior valor? Para onde regressamos nós quando deixamos para trás as nossas raízes?

Eu acho que Mia Couto não entendeu que o imbondeiro criou raízes noutro lugar, junto aos ramos, quando a sua amada partiu, para a poder cobrir de abraços enquanto ela está ausente. E reveste-se de inúmeras lindas, pequenas folhas verdes, como que a sorrir, sempre que ela regressa. É por isso que toda a gente sabe quando o imbondeiro anda feliz ou triste.

Vou deixar o meu imbondeiro em África, triste, sem folhas...
E é por isso que não sei, se regresso a casa agora...

Ou se só regressarei quando voltar.

sábado, 11 de agosto de 2012

Kalandula – E o Arco-Íris Permanente


Imaginem uma extensão de 410 metros de água a precipitar-se a alta velocidade de uma altura de 105 metros. O som deve ser impressionante. É uma enorme queda de água que surge no meio da vegetação. 

E como se já não bastasse ser uma paisagem de indescritível beleza ainda possuí um arco-íris permanente.

As Quedas de Kalandula, perto de Malanje, devem ser, no mínimo, deslumbrantes, especialmente se observadas de uns simples metro e meio de altura.

É impossível não sentir respeito por uma vista encantadora. É onde vou hoje, de manhã cedo.

Volto no domingo para vos contar detalhes do que encontrei.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Descida a África


Os risos das crianças pequenas nas brincadeiras de rua, o choro do bebe recém-nascido da vizinha, que a avó consola num longo embalo cantado, sentada numa cadeira de jardim, as manas pequenas que se lavam uma à outra num alguidar, enquanto os pássaros, numa tremenda gritaria e voo indeciso, escolhem o seu abrigo para esta noite, e os aparecimentos surpresa da Fiéri recordam-me aquela tarde dos meus cinco anos, em que fui com a avó Maria tirar fotografias à Estefânia, a casa do Filipe, o padrinho do paizinho, José Fernando.

No pátio, ouviam-se os risos gargalhados dos meninos africanos que corriam, a fugirem uns dos outros, brincando descalços, enquanto as suas mães moíam a farinha de mandioca no pilão, entre cânticos, gritados à vez por cada uma delas, algumas com os bebes às costas, e enquanto a minha avó Maria lavava a loiça do almoço na cozinha, eu só pensava em brincar.

Queriam que passasse a tarde a brincar na salinha de estar, com o sofá grande onde aguardavam que eu adormecesse, sem fazer milhares de perguntas, como costumava fazer diariamente.

O cadeirão em pele castanha, ao lado do candeeiro de pé alto com um abajur de cor bege, às pregas, com farripas penduradas, e uma enorme estante carregada de livros, outra com vários jogos de mesa: damas, cartas, dominó e xadrez iguais aos do meu avozinho, ambas com portas de vidro fechadas a chaves douradas. Pendurado na parede, um quadro grande com dois senhores a jogarem às cartas. No canto, junto à janela, uma mesa redonda com uma toalha rosa-velho a segurar apenas um candeeiro de porcelana. No tecto, o candeeiro de cristais, expandia a luz do Sol projectada pela janela, e invadia a sala de milhares de cores lindas, muito mais do que o estojo de canetas que o meu pai me trouxera da Suíça, que se espelhavam em todo o lado, nos vidros, nas paredes, fazendo efeitos mágicos naquele espaço e na minha memória.

Os meus brinquedos espalhados no chão, eu sentada num felpudo tapete em forma de animal, o cobertor estendido no sofá à minha espera e eu sem sono, ouvia a minha avó desabafar com a madrinha que eu não dormia a sesta e que não sabia o que me fazer. “Mas ela dorme de noite, não dorme?” E a resposta positiva da avó descansou a madrinha que respondeu “Então não te preocupes. Deixa-a brincar. Há crianças que têm mais energia que outras.”

Eu queria brincar, mas não sozinha.

Até que um dos gatos do pátio apareceu na porta da sala e esfregando-se languido na ombreira, miou-me num quase convite para o seguir.

Lembro-me tão bem de ouvir os gritos das crianças desde a cozinha e de a medo me debruçar pelo parapeito para as espiar. Lembro-me tão bem de ter medo de uma cultura bem diferente, e para mim ainda desconhecida. Enquanto o gato descia a África, lembro-me de ter ficado ali parada, um bom tempo a observá-los, as diferenças, os braços de cor mais escura que os meus, eles vestindo apenas calções e elas uns leves vestidos, como eu trazia, corriam descalços como se estivessem na praia.

Lembro-me tão bem de, no momento da decisão, descalçar os sapatos, de encher o peito de coragem em vez de ar e, de um a um, atrever-me a descer cada degrau daquela imensa escadaria, e enquanto os gritos das mães e dos meninos ecoavam por todo o pátio, o meu coração vibrava.

Lembro-me que valeu a pena. Fui aceite nas brincadeiras e mesmo sem terem nada de especial para brincar, lembro-me que foi muito divertido.

Foi a primeira vez que desci a África.

Eu sinto-me aqui agora como se já cá tivesse estado dessa primeira vez.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A Menina Que Não é de Shoppings


Na verdade não sou de shoppings nem no meu país nem em nenhum lugar do mundo. Pode até ser o melhor shopping de Luanda, que para mim é igual ao Babilónia da Amadora.

Visitei quatro vezes o Belashopping, três delas para bebermos café no SóPeso num quiosque exterior com uma esplanada. E doutra vez, aguardei que terminasse a reunião do Pedro para ter boleia para casa, e confesso que devorei ‘A Confissão da Leoa’ de Mia Couto até ao fim, numa tarde, sentada como que numa biblioteca barulhenta. Mais livros houvesse trazido, mais livros teria lido.

Não sou miúda de shoppings coisíssima nenhuma!

Mil vezes ficar em casa a escrever, a ler, a fazer sudokus, a ver o gato dos telhados dormir deleitado, enquanto o galo confuso cacareja, a ver a Fiéri caçar moscas ou a trepar os troncos das árvores do nosso pátio num ataque a quatro patas, a observar pela janela do quarto as crianças pequenas brincarem em cima de um carro velho, sem rodas, num pequeno descampado, cercado por um muro enquanto, no pátio da casa ao lado, o mano mais pequeno, num voto de confiança total, deixa o mais velho cortar-lhe o cabelo cuidadosamente com uma gillette.

Prefiro passear de chinelas pelas ruas de terra batida do Bairro, a ver as novas casas de betão que vão surgindo entre os muros, as zungeiras sentadas nas esquinas às sombras a aguardarem a passagem de clientes com as bananas num alguidar e os ananases noutro e a imaginar as minhas próximas histórias, do que num Centro Comercial.

A hora de almoço ontem passou a correr, mas vale sempre a pena fazer um passeio a pé pelo Bairro com a Paula.

Passamos pelas zungeiras com couve repolho e eu fiquei a observar atentamente a negociata da Paula. “Quanto custa?” “400” responde a zungeira, e no desinteresse da Paula que retoma a marcha ela baixa para “300”, como a Paula continua a andar, ela dispara novo preço e só vejo a Paula voltar atrás, “quanto disseste?” 250 Kz foi o preço final. A Paula agarra numa couve, e diz “esta não. Deixa-me ver aquela”. “Limpa-me isto tudo. Tem as folhas todas velhas.” Enquanto isso um chinês aproximou-se e fez a mesma pergunta sobre a couve. E a zungeira fez igual negócio. Começou com 400, baixou para 300, e depois 250 Kz. Mas o chinês não levou a couve nem assim àquele preço de mais ou menos 2,5€. A zungeira argumentou indignada “então?! queres oferecido?!”

A Paula recebeu 50 Kz de troco e trouxe com ela uma couve repolho, renovada, verde clara, jeitosa. O esperto do chinês desconfio que voltou mais tarde, e que ainda deve ter conseguido um desconto.

Hoje aprendi a negociar a compra de couves com a Paula… e com o chinês!

Regressei a casa. Almocei e fui lavar estes pequenos pés que ultimamente andam a fugir para os chinelos.

Quando vou a shoppings não tenho de lavar os pés, como aqui no Bairro quando se regressa da rua.

Acreditem, começo a sentir que a vida com pó nos pés é muito mais bem vivida!

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Gato em Telhado de Zinco Quente


Era o meu pai quem falava muito no filme, que ele passara nos tempos áureos do Cinema Quarteto, numa daquelas sessões de filmes antigos. Eu nunca o vi. Mas o nome do filme sempre me fez confusão, desde pequena, por imaginar que a gata se queimava no zinco quente.

Foi em África que encontrei a explicação!

Há por aqui um gato dos telhados que dorme a meio da manhã e a tarde inteira no telhado de zinco quentinho de uma casa do Bairro. 

Refolga-se todo. Deita-se de lado e ali fica. Às vezes até lhe sobem as patas para o ar, e deixa-as abertas, de satisfação. Deve pensar que é um Aristogato. 

Que ricas sonecas é desavergonhadamente apanhado a fazer. Quer da janela da cozinha, quer da janela do quarto espreitamos e lá está ele, bicho de hábitos, sempre no mesmo lado do telhado.
 
Ontem fui espreitá-lo em plena sorna e deu-me cá umas invejas… que decidi fazer o mesmo. Não sei como será em zinco quente, mas na cama, ah recomendo umas sonecas a meio da manhã e a meio da tarde como belíssimas regalias de férias. 

Ao vê-lo assim deitado em sossego, engana-nos bem. Parece um ‘sopinhas de leite’! 

Mas é um gato complicado. Passa a vida em zaragatas. Não há noite desde que cá estou que não o tenha ouvido numa bulha. É um daqueles gatos refilões. Devem ser assuntos de miúdas a julgar pela algazarra.

Mas já percebi que às vezes até se envolve com cães. Qualquer dia está o ‘caldo entornado’.

Mas para mim o que é importante é ter resolvido este mistério:

O que faz um gato em telhado de zinco quente afinal?...

Dorme quente e descansado!

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Ideias para o Almoço


São pratos típicos de Angola. De modo que decidi hoje partilhar convosco o meu almoço.

Aqui vão as receitas para vos inspirar.

Não esqueçam os detalhes fundamentais: não é um óleo qualquer, é óleo de palma; gimboa (folha da batata-doce), farinha de mandioca e quiabos.

Se preferirem, utilizem frango em vez de peixe, o que aqui chamam da 'variante fingida' de calulu, que é o que se faz em São Tomé, exactamente o que a São está a fazer para o nosso almoço.

Quiabo - É uma planta de origem africana. O seu fruto é uma boa fonte de vitaminas A, C, B1 e cálcio. De fácil digestão, é recomendado para pessoas que sofrem de problemas digestivos. É eficaz contra infecções intestinais, bexiga e rins.

Bom Apetite!

Entrada de Camarões com Quiabos
1 Kg de camarões
20 quiabos
4 tomates
1 cebola
Alho q.b.
Óleo de palma q.b.
Gindungo q.b.
Sal q.b.

Faça um refogado com o alho, a cebola, o óleo e o tomate.
Junte ao refogado os quiabos partidos às rodelas, os camarões descascados e o gindungo.
Deixe cozer em lume brando até apurar.

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Calulu com funge ou pirão
1 kg de peixe grosso + 250 g de peixe seco
(ou 1 Kg de frango)
250 g de beringela ou courgettes
250 g de quiabos
250 g de tomate maduro
1 cebola pequena
500 g de gimboa
Farinha de mandioca q.b.
1,5 dl de óleo de palma
Picante q.b.
Sal q.b.

Arranje o peixe e corte-o às postas. Tempere com pouco sal.
Ponha ao lume um pouco de água até ferver. Junte o óleo e os restantes legumes.
Junte o peixe seco e deixe cozer um pouco.
Se faltar agua, acrescente pouco e pouco até apurar.
Depois junte o peixe fresco e deixe apurar.
Rectifique os temperos, juntando o picante a gosto.
Gostando, pode engrossar com um pouco de farinha de trigo ou fubá de mandioca.
Acompanhe com funge ou pirão.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Perguntas Erradas


-“Tens filhos Paula?”
-“Não. Biológicos, não. Eu sou estéril. Mas adoptei três bebés. O mais velho tem agora 14 anos. Tem um problema de fala, vive com o pai em Braga, e está a ser tratado. A mais nova é ainda bebé, tem 2 anos. E a mais nova tem 6 anos, é a Deusa. É uma menina muito inteligente. É filha de uma mulher maluca. A mãe teve de ser acorrentada, nos últimos dias da gravidez, para dar à luz e não lhe fazer nada de mal. Mas agora não vivem comigo. Vivem com a minha irmã, porque eu saio muito cedo e regresso a casa tarde do trabalho. Eu vivo sozinha.”

Quando anoitece, Paula prefere ir até casa sem companhia do que com brancos – “torna-se mais perigoso para vocês regressarem sem a companhia de um local”.

A Paula vive num musseque, por isso não tem as filhas com ela. Está divorciada de modo que tem de trabalhar e chega a casa já de noite.

“Quando chegar a casa isto já está descongelado” desabafa enquanto observa os filetes de peixe que seriam para o almoço de domingo, e não havia luz na zona. Aqui falta a luz de rede com muita frequência e a maioria das pessoas não tem gerador, luxo dos mais ricos. Factor que acaba por complicar adicionalmente vidas já tão difíceis nem mesmo antecipando as refeições dos próximos dias.

O Mário que entretanto se aproxima entra na conversa e questiona a sua origem:
- “Donde és tu, Paula?”

- “Eu nasci em Humpata. Fui circuncisada.” Ouvi esta atrocidade e arrepiei-me.

Perdi a capacidade de descrever essa mutilação, forma de eliminar o prazer sexual feminino, grave ofensa contra os direitos humanos, desde que me forcei a ver até ao fim uma reportagem relacionada, na minha adolescência. Felizmente a Paula sobreviveu mas muitas meninas morrem de imediato do sangramento ou de infecções relacionadas, e acarreta riscos de saúde permanente para as que sobrevivem.

Faltavam-me as palavras.
É o Mário quem questiona que aquilo não se faz há anos. Fazem-se apenas rituais religiosos simbólicos. Mas a Paula teve o azar de nascer em 1968, num ano em que ainda se cumpriam esses rituais na província de Huíla. Ficamos sem saber se a esterilidade da Paula, não será causa/ efeito de tal mutilação. Mas fica provada a inutilidade de tal ritual que, entre muitas razões, alega não se poder conceber sem esta ignorante prática.

Ficámos a observá-la de queixo caído, ombros baixos, pensativos, voz triste, condoídos.
Como podem pessoas serem capazes de práticas abomináveis que nem os animais cometem?
Como pode uma pessoa sorrir assim, depois de tantas maldades que lhe foram infligidas?

Há perguntas erradas que nos fazem correr o risco de aumentar a admiração por algumas pessoas e a raiva pela estupidez humana, num mundo com tanto potencial e porém, tão longe de ser perfeito.

domingo, 5 de agosto de 2012

A Savana


Observou-nos ao longe, surpreendido e arrancou de seguida a admirável velocidade, fazendo com as patas uma imensa e estratégica nuvem de poeira. Espantoso, correu ferozmente, fugindo de nós, abanando a cabeça a cada galopada. Afastava-se com rapidez e parava de vez em quando, deslizando em travagem, e de lado, continuava a observar-nos, como que a tentar perceber se nos tinha afugentado, se ainda havia ameaça ou se teria de despistar os seus perseguidores por outro caminho. Bufava, saíam das suas narinas vários bafos de ar, da respiração ofegante, que o tornavam ainda mais ameaçador, até que retomou a corrida e desapareceu por completo no horizonte, no meio do pó, que levantou à nossa frente na Savana.
Parecia um cavalo com uma cabeça de touro. Era um belíssimo gnu.

África tem destas coisas!

Podia ser um filme, mas foi o nosso domingo!

Começámos o dia com uma passagem pelo Miradouro da Lua e um fabuloso pequeno-almoço na esplanada do Kwanza Lodge, com vista para o rio, e passeámos toda a manhã pelo majestoso Kwanza à procura de crocodilos.

Deixámos o barco deslizar na água, com o motor desligado, várias vezes, à espreita, à espera num silêncio quase assombroso. Mas sem sucesso. Nem crocodilos nem jacarés compareceram. Ou pelo menos nós não os vimos.

Imaginámos ter visto por duas vezes os seus olhos, a espreitarem-nos escondidos, mas não confirmamos nada. Estou quase segura que eles nos viram a nós, sossegados, astutos e devemos ter sido motivo de reunião na selva sobre como aumentar a segurança da espécie.

Os macacos, apesar de temerosos e das suas tentativas de se esconderem nas árvores, parados a tentarem dissimular-se, vimos imensos. A esses vimos e ouvimos muito bem. A certa altura acreditamos ter assistido a uma discussão, vibrante e emotiva, com violentos gritos à mistura. 

No entanto, conseguimos igualmente encontrar um casal pacífico em pleno namoro, e a fazerem-nos pose, à espera de uma fotografia.


Mas mesmo que não tivéssemos visto nenhum animal, bastava a sublime visão de um imponente rio de águas verdes, com a esplêndida vegetação tropical e o glorioso céu azul cinza a espelharem-se nele, ao canto melodioso dos pássaros nunca antes ouvidos, num magnificente cenário de cortar a respiração.

Depois de almoço, a Savana.

Fizemos um safari num Land Rover, preparado para observarmos os animais selvagens protegidos no Parque da Reserva Natural do Quiçama, e fomos recebidos pelo gnu no relato inicial.

As girafas começaram a ver-nos ao longe e continuaram a olhar-nos com alguma despreocupação por entre as árvores circundantes enquanto se banqueteavam de apetitosas folhas. Espiavam-nos à medida que nos aproximávamos muito devagar, com seus pescoços imensos e orelhinhas pequenas voltadas para nós, assemelham-se às vizinhas cuscas das ruas de Lisboa a ouvirem as conversas dos outros. A nossa admiração quando começámos a conta-las, uma, duas, três, quatro… uma dezena de girafas, que combinaram correr juntas, a determinada altura, como se tivéssemos passado determinado limite de segurança. Ao vê-las assim, afligidas, experimentei assobiar-lhes e elas admiravelmente pararam a olhar para nós. Indignadas, algumas tombaram as suas cabecinhas de lado. E todos estarrecidos, registámos o momento absolutamente fabuloso. Ficou um extasiante quadro na minha memória, de inesquecível.

Os elefantes, não fossem os olhos atentos, excelentes, habituados a estas observações, do vigilante do parque desnecessariamente armado até aos dentes, e não os veríamos. Os dois estavam instintivamente escondidos no meio das árvores. Excelente cena em que eles se escondem, dando um passo atrás ao ouvirem o motor do jeep, para se cobrirem de vegetação, num instinto protector, a aguardar que passássemos. Podíamos ter andado por ali a tarde toda às voltas que os inteligentes bichos, apesar de portentosos, tinham-se camuflado de nós com muito sucesso.

Com os seus dentes de marfim inteiros, intactos, eram dois gigantes, magnificentes bichos, absolutamente divinais. Só não os ouvi. Não disseram nada, talvez sentindo que vínhamos em paz. A determinada altura, medido o perigo e considerando desnecessária a protecção, levantaram a tromba como que a acenar-nos e prosseguiram o seu trajecto nuns descontraídos e pesados passos de 7 Km por hora, deixando para trás as suas pegadas bem visíveis no chão, e seis portugueses e três africanos boquiabertos e sorridentes.

Muitos codos e muitos veados, alguns destes bebés, todos a fugirem de nós com uma admirável rapidez, noutros casos certamente justificável. E um outro gnu mais velho, mais escuro, que a determinada altura atravessa, em grande corrida de um lado ao outro, a estrada à nossa frente, desafiando-nos, foram algumas das surpresas que tive ontem o privilégio de viver no seu habitat natural. 

E das várias aves raras, que se encontram por África, espantosamente únicas, há uns pássaros que, como os corvos na Europa, reúnem-se no chão e voam juntos à nossa passagem, num maravilhoso e indescritível voo de asas azuis.

São mesmo parte daquele ambiente selvagem. Estão claramente em casa, ali, no seu espaço natural, tal não é a perfeição em que encaixam na savana. Este dia em Angola, foi até ao momento, o mais surpreendente que já vivi.

sábado, 4 de agosto de 2012

O Galo Com_Fuso


Há um galo com_fuso horário em terras africanas. Cacareja da meia-noite às oito da manhã, e ninguém diz ao Senhor Galo que o horário está errado!

Baralha-me os sonhos. Que desgraçado!

Os galos normais cantam ao nascer do Sol, lá para as cinco da madrugada. Mas este galo tem a mania que é especial.

Deve ter pancada! Levou tantas bicadas naquela cabeça de galinha, que ficou com o relógio avariado.

Não há um pinto ou uma galinha, capaz de uma boa acção, que acorde esta alminha às horas certas para o cumprimento da sua nobre tarefa? Este é certamente um galo que precisa de ajuda. É melhor levá-lo a um Psicógalo com urgência! 
 
Porém, já ninguém lhe tira o mérito: é um grande galo, sim senhor! Tomara muitos frangos terem tanta pedalada! 

Canta horas a pio, seguidas. Às seis da madrugada está rouco. É quando deixa de ser o Senhor Galo... e passa a ser o Tenor Galo! Já o tenho imaginado em sonhos numa grande opereta, em que ele en_canta a assistência de galinhas e depois as galanteia.

Tenho esperança ainda que encontre a sua galinha-metade, uma galinha do campo ou uma mãe-galinha que lhe baixe a crista, e que cure este galã de uma vez por todas. Há-de ficar uma pinta de galo!

Os meus sonhos é que andam trocados, graças ao galo que mora ao lado. Às tantas acordo e nem sei a quantas ando! Ouço o galo a toda a hora.

Grande galo o meu!… ou melhor o da vizinha… que é muito melhor que o meu!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A Casa dos Meus Sonhos

Ontem o Pedro teve de ir dar assistência a um cliente: O Banco Sol ia abrir a nova dependência hoje, de modo que todos os problemas de segurança electrónica tinham de ficar resolvidos.

Lá andou ele toda a tarde e bem tarde de volta do Banco.

As dependências dos bancos por cá são pequenas casitas de betão, com grandes janelas e portas de vidro. Lá dentro é tudo muito amplo, com luz clara, e muito limpo.
Banco Sol tem um néon amarelo claro que contorna a dependência por fora. Fica lindo. Mas fica mais lindo quando a luz acende, a partir das 17 horas, porque escurece muito cedo.
 
“Mas que coisa tão bonita!” foi a exclamação de um petiz de 8 ou 9 anos que a irmã mais velha passeava pela mão, e que parados ficaram a contemplar a dependência do Banco. Ambos parados em frente ao Banco, de mãos dadas, observavam como quem aprecia uma paisagem magnífica. Eles estavam maravilhados, aprazidos, de verem uma casa tão bonita.

No meio dos musseques surgem casas bonitas assim, sempre de comércio, que são o melhor exemplo que se tem de uma habitação condigna. Fora isso, vêem-se os muros de condomínios privados, que escondem casas luxuosas, em alguns Bairros.

Não sei se sorria se chore.

Baixo os braços. Sou incapaz de resolver isto! Dentro de mim surge a questão ‘porquê?’ e encolho os ombros sem respostas.

Apesar dos cartazes espalhados por toda a Luanda ‘mais habitação, por um futuro mais e melhor’, o meu coração não sossega, tal é a pressa de ver isto resolvido.

Carita doce. Voz singela. Hoje deve ter feito na Escola uma daquelas composições onde descreve a casa dos seus sonhos… ‘Quando eu for grande vou fazer uma casa enorme, com janelas de vidro e um telhado com telhas de verdade e vou alojar todos os meninos do meu bairro!’

Ah! Como eu gostava de realizar todos os meus sonhos!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Estendal Colorido

Há roupa estendida em todo o lado. As mulheres africanas lutam contra este tempo do cacimbo - estação seca - para lavarem a roupa e conseguirem que ela seque com esta humidade. 

Hoje estão 25ºC e 57% de humidade. Não é muita, mas é o suficiente para a roupa ter de ficar estendida um dia e meio, ou dois ou três dependendo da peça.

O Desespero da Empregada

Muita gente, muita roupa. 
Há aqui muitos portugueses. Logo há muita roupa.

A São, a africana que limpa a casa, vê-se grega para dar vazão a tanta roupa:
Lençóis, toalhas de mesa, toalhas de banho, cuecas, meias, camisas, t-shirts, calças de ganga…

Tudo a secar num estendal interior que até já partiu uma vareta com o peso.

Ela faz uma ginástica imensa. Estende tudo em todo o lado. Enquanto isso, resmunga. Quer mais um estendal. As pessoas são mais, e o estendal é só um.

Cá fora, enquanto escrevo na varanda, aprecio a roupa branca e colorida que me rodeia por todo o lado. Desde o corrimão às costas das cadeiras, nada escapa às técnicas da São. Não fossem as diferenças culturais e isto assemelhar-se-ia à aldeia da roupa branca.

As mulheres são de facto versáteis. Olho as casas em volta e apercebo-me que todas têm o mesmo desafio. Roupa estendida em cordas improvisadas, umas a seguir as outras, algumas na diagonal, num autentico desafio ao sol que quase nunca se mostra por aqui nesta época.

Casas e casas, cordas e cordas. Imensa roupa e imensa cor que pinta a rua e a enriquece, no meio de árvores e de verde. Mas para mim ganha o estendal da vizinha com um bebé recém-nascido, cujas roupas pequeninas são no mínimo uma delícia visual. As calcinhas e camisolinhas dele, junto das fraldas e lençóis tudo em miniatura ao lado das minúsculas meias, contribuem para o meu voto. Para mim a vizinha do bebe devia ganhar um prémio, pelo desafio de ser mulher e de ter bebés pequenos nesta terra vermelha, de pó, na época do cacimbo!

Vale-nos o sol que procura aparecer por entre as nuvens e insiste em aquecer a rua. Os pássaros cantam-lhe em agradecimento enquanto voam de árvore em árvore. 

Até a casa em frente à nossa, pintada de amarelo reluz mais ao sol em forma de imitação e tudo na rua se transforma numa beleza indescritível.

Coisas Que Água e Skip Não Lavam

Abri a torneira do lavatório e deixei encher.

Tombei um pouco de skip e coloquei lá dentro o vestido que trazia quando fiz a visita ao musseque.

Queimei-me. A água a ferver queimou-me as mãos.

Deixei-o de molho umas horas. Quando voltei a água estava azul.

Lavei. Esfreguei. Passei por água várias vezes e estendi o vestido, feliz com o cheirinho a lavado e tom azul. Está limpo de novo. Está quase novo.

Apesar de haver coisas que nem a água nem o Skip lavam, eu também estou quase nova. Ou melhor, renovada.
Aproveitei a oportunidade para crescer um pouco, amadurecer mais e aprender.

Guardo duas bolhas nas mãos como recordação por um par de dias. Mas a recordação daquele dia... guardo para sempre.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Gata Africana

Há sempre um gato onde quer que eu vá. Desta vez é feminina. A Fiéri, miúda de 8 meses, deixada pela mãe e pelos irmãos que um dia, ainda pequeninos, decidiram fugir para experimentar a liberdade. Não sabemos resultados porque nunca mais voltaram com novidades mas a Fiéri, essa ficou, e sabemos que é uma gatinha a quem ninguém toca.

Branca, com manchas cinza, rabo amarelado e olhos verdes. É linda. Cabeça pequenina, como qualquer gata, pousa as patinhas com a delicadeza felina, sempre uma à frente da outra, aumentando a inveja de muitas senhoras. Pára a olhar para nós com aqueles olhitos lindos. Fecha-os duas vezes seguidas enquanto ainda olha na nossa direcção. Dá uma turra no móvel e mia. Pronto, foi assim que nos enfeitiçou.

Gosta da companhia. Gosta da comida. Gosta que conversemos com ela. Mas festas, nem pensar! Se bem que dá turras por todos os lados enquanto falamos com ela. A questão é que ela deve saber que no dia em que levar uma festa, apaixona-se e não quer outra coisa.
Mas tem medo, muito medo. O que não é de espantar já que aqui não se gosta muito de animais e dos gatos em particular, e fazem-lhes mal com frequência. De modo que ela redobra a atenção de um gato normal. Ouve todos os sons e reage muito a cada um deles para detectar o perigo e se precisar correr, ela desaparece num ápice. O medo é tão grande que no outro dia pousou-lhe uma mosca no lombo e ela mandou um pulo de susto.

Um dia lembrei-me de dar-lhe água limpa numa tacinha. Pela reacção não me admirava que tivesse sido a sua primeira experiência. Desse dia em diante tem sido sempre agradecida. Vem sempre que lhe assobio. Sobe as escadas a correr. E agora até já aparece sem ser chamada, só por me ver na varanda.
Sente-se confortável. Não é assim com toda a gente. Connosco entra em casa, senta-se na carpete, brinca sozinha e de vez em quando, mia-nos como se quisesse dizer o quanto gosta de nós.

Ao fim de uma semana de mimo, já se senta no sofá. Fica a admirar as imagens e os sons da TV. E agora até já adormece lânguida na cadeira da cozinha.

Ontem foi o momento mais engraçado porque decidiu brincar comigo. Enquanto me desafiava a correr e a fugir, era ela quem ganhava sempre. Mas às escondidas ganhei-lhe eu. Preguei-lhe um susto tal que ela deu um salto de quatro patas. Para me desafiar andou a fazer um assalto à minha écharpe que estava tombada no sofá... Ela agarrava-a com a boca e fugia porta fora. O azar da Fiéri é que a écharpe é enorme e eu agarrava-a sempre pela outra ponta. A gata gostou tanto do desafio que não parava de me tentar roubar a écharpe. Subia o sofá, trincava a écharpe com os dentinhos e corria porta fora. Ontem à noite rimos muito com ela. É mesmo esperta. 

Antes de fechar a porta ainda a apanhei de costas e dei-lhe uma festa furtiva e inesperada. Ela não reagiu muito. Até parecia indiferente. Só sei que gostou porque dormiu toda a noite no tapete.

Os animais nem enganam, nem se deixam enganar.